Anatomia de um crime sexual
Homem que terá abusado de crianças aguarda julgamento em liberdade
Um homem de meia idade, residente no Funchal, aliciava crianças e levava-as para casa, onde, co-habitando com familiares, não hesitou consumar os seus ímpetos sexuais. Depois passou alguns meses em prisão preventiva e aguarda, desde início de Janeiro, julgamento em liberdade. Poucos meses decorrem desde a entrada em vigor de um novo Código Penal.
Terá começado com um convite para um passeio. O miúdo concordou. Andaram pelo Funchal durante todo o dia e, ao anoitecer, seguiram para a zona da capital madeirense onde vivia o homem de meia-idade. Ficaram-se pelas proximidades da residência durante algumas horas, até que os outros moradores na casa, os próprios familiares, se fossem deitar. Depois puderam entrar sem serem detectados.
No quarto do homem, o menor passou algum tempo entretido com um jogo electrónico. Cerca de uma hora depois, já com a criança deitada na cama, começaram as carícias ao menor. Que depois avançaram para beijos na boca. E penetração anal. O encontro terminaria ainda de madrugada, antes que a presença de ambos pudesse ser notada por algum dos restantes residentes. Com o menor a receber algum dinheiro para o regresso a casa.
Não foi fenómeno isolado. Haveria de repetir-se mais vezes. Com outros intervenientes, mas o mesmo protagonista. Em comum com o caso anterior, apenas a dormida na mesma cama. Os beijos passaram a ser efectuados na cara, no pescoço e na cabeça. No mesmo cenário, o quarto, os menores terão sido apalpados, nas nádegas e testículos. O homem terá também exibido filmes pornográficos.
Os factos remontam ao primeiro semestre de 2007. Depois da denúncia, o arguido foi colocado em prisão preventiva enquanto decorria a fase de inquérito, que acabaria por indiciar factos susceptíveis de integrar a prática de abuso sexual. Saiu em liberdade no início de Janeiro. Porque esta situação poderia causar perigo às vítimas, as suas famílias foram avisadas, dois dias antes, por notificação judicial, de acordo com as normas do Código de Processo Penal. Poucos dias depois veria ser-lhe deduzida acusação. Está a aguardar julgamento por crimes de abuso sexual de crianças, quer na forma tentada, quer na forma agravada.
Aliciamento com prendas e arquivamento de inquérito
O aliciamento dos menores terá sido feito à base de prendas. Das mais variadas formas e feitios, desde roupas e calçado até artigos electrónicos e dinheiro. Incluiu igualmente passeios e actividades lúdicas, como idas ao cinema. Concluído o inquérito, o Ministério Público (MP) terá concluído que o homem agiu livre, voluntária e conscientemente. Porque sabia a idade dos menores e tinha perfeita consciência que este comportamento ofendia a moral sexual, atentava contra a liberdade de determinação sexual e prejudicava o normal desenvolvimento da personalidade destes. Condutas que o homem tinha consciência serem proibidas e punidas por lei.
O mesmo inquérito indiciou factos susceptíveis de integrar a prática do crime de abuso sexual de adolescentes, desta vez contra outro homem que se terá envolvido com um dos menores referenciados no processo e com idade compreendida entre os 14 e 16 anos. Neste caso, a acção penal depende de queixa do titular do direito, o que não aconteceu. O inquérito foi arquivado, uma vez que o Código Penal não dá ao MP legitimidade para exercer a correspondente acção penal.
O que mudou na lei
O novo Código de Processo Penal entrou em vigor em Setembro de 2007. A reforma do diploma pretendeu o aprofundamento das garantias processuais, com maior foco na protecção da vítima, a modernização e racionalização do processo penal, a simplificação de actos e uma aceleração nos processos. Este caso, naturalmente, só há poucos meses entrou no espírito da nova lei.
Entre as mudanças, os tribunais passaram a ter a obrigação de informar as vítimas de crimes da libertação ou fuga do arguido ou condenado, sempre que exista perigo para estas. No caso de crimes contra a liberdade e autodeterminação sexual de menores, as declarações para memória futura passaram a constar do inquérito como forma de proteger quer as vítimas, quer as testemunhas.
Nas garantias processuais, a constituição de arguido ficou a depender da existência de suspeitas fundadas e de validação da autoridade judiciária. As denúncias manifestamente infundadas deixaram de dar lugar à instauração de inquérito, procurando assim evitar a perda de tempo e desperdício de meios.
Quanto à prisão preventiva, os prazos foram reduzidos e passaram a ser aplicáveis a crimes puníveis com pena de prisão superior a cinco anos.
Silêncio é aliado do agressor
Há pouco mais de uma semana, a Polícia Judiciária, através do Departamento de Investigação Criminal do Funchal, identificou um homem suspeito de importunar sexualmente, através do telefone, dezenas de menores do sexo feminino. O abuso sexual de crianças e menores ganhou protagonismo com o processo Casa Pia, mas há muito que as referências a este tipo de casos tem destaque na Comunicação Social.
O conceito de abuso sexual infantil não tem uma única definição. Mas psicólogo infantil tem dúvidas de que se trata de uma das piores formas de abuso sexual sobre crianças. No conceito entram uma multiplicidade de actividades sexuais, que não têm que passar exactamente pelo contacto físico. É considerado abuso a utilização de crianças para satisfação do desejo sexual de pessoas mais velhas, desde o telefonema obsceno até à penetração.
Nem sempre é um problema fácil de detectar. Antes de mais, porque as vítimas escudam-se muitas vezes no silêncio, por motivos tão variados como medo de represálias, vergonha ou receio da exposição pública a que poderá estar sujeito. Razões que poderão fazer com que os abusos se perpetuem, fazendo com que o silêncio se torne no pior inimigo da vítima e no principal aliado do agressor. Torna se por isso essencial que os diferentes interventores sociais que lidam com menores saibam reconhecer e tenham consciência dos sinais e sintomas envolvidos, mudanças de comportamentos que possam indicar que estes estão a ser vítimas de abusos. Especial atenção merecem os casos em que os abusos ocorrem dentro do próprio seio familiar (a maioria), uma vez que a denúncia pode fazer com que as crianças sintam ameaçado o relacionamento com as pessoas que amam.
Juridicamente, o abuso sexual de menores é analisado sob duas perspectivas distintas: a defesa da criança e a punição do agressor. Se na primeira entra a Lei de Protecção de Crianças e Jovens em Perigo, a segunda remete para os crimes contra a liberdade e autodeterminação sexual, consagrados no Código Penal.
O abuso sexual de crianças é um problema que, cada vez mais, tem vindo a preocupar as sociedades modernas. E envolve todas as estruturas sociais, desde as famílias, às escolas, à polícia, às comissões de protecção de menores e aos meios judiciais.
Enquadramento Legal
Código Penal
Artigo 170º
Importunação sexual
Quem importunar outra pessoa praticando perante ela actos de carácter exibicionista ou constrangendo-a
a contacto de natureza sexual é punido com pena de prisão até um ano ou com pena de multa até 120
dias, se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal.
SECÇÃO II
Crimes contra a autodeterminação sexual
Artigo 171º
Abuso sexual de crianças
1 — Quem praticar acto sexual de relevo com ou em menor de 14 anos, ou o levar a praticá-lo com
outra pessoa, é punido com pena de prisão de um a oito anos.
2 — Se o acto sexual de relevo consistir em cópula, coito anal, coito oral ou introdução vaginal ou anal
de partes do corpo ou objectos, o agente é punido com pena de prisão de três a dez anos.
3 — Quem:
a) Importunar menor de 14 anos, praticando acto previsto no artigo 170º ; ou
b) Actuar sobre menor de 14 anos, por meio de conversa, escrito, espectáculo ou objecto
pornográficos;
é punido com pena de prisão até três anos.
Artigo 178.o
Queixa
1 — O procedimento criminal pelos crimes previstos nos artigos 163.o a 165.o, 167.o, 168.o e 170.o
depende de queixa, salvo se forem praticados contra menor ou deles resultar suicídio ou morte da
vítima.
2 — O procedimento criminal pelo crime previsto no artigo 173.o depende de queixa, salvo se dele
resultar suicídio ou morte da vítima.
3 — Nos crimes contra a liberdade e autodeterminação sexual de menor não agravados pelo resultado, o
Ministério Público, tendo em conta o interesse da vítima, pode determinar a suspensão provisória do
processo, com a concordância do juiz de instrução e do arguido, desde que não tenha sido aplicada
anteriormente medida similar por crime da mesma natureza.
4 — No caso previsto no número anterior, a duração da suspensão pode ir até cinco anos.
XXXXXXXXXXXXXXXX
Código de Processo Penal
Artigo 277º
Arquivamento do inquérito
Artigo 283º
Libertação do arguido sujeito a prisão preventiva
1 – O arguido sujeito a prisão preventiva é posto em liberdade logo que a medida se extinguir, salvo se a prisão dever manter-se por outro processo.
2 – Se a libertação tiver lugar por se terem esgotado os prazos de duração máxima da prisão preventiva, o juiz pode sujeitar o arguido a alguma ou algumas das medidas previstas nos artigos 197º a 200º, inclusive.
3 – Quando considerar que a libertação do arguido pode criar perigo para o ofendido, o tribunal informa-o, oficiosamente ou a requerimento do Ministério Público, da data em que a libertação terá lugar.
Artigo 283º
Acusação pelo Ministério Público
1 - Se durante o inquérito tiverem sido recolhidos indícios suficientes de se ter verificado crime e de quem foi o seu agente, o Ministério Público, no prazo de dez dias, deduz acusação contra aquele.
2 - Consideram-se suficientes os indícios sempre que deles resultar uma possibilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicada, por força deles, em julgamento, uma pena ou uma medida de segurança
TEXTO: RICARDO SOARES
http://www.tribunadamadeira.pt/?article=7106&visual=2&layout=25&id=2
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