segunda-feira, 31 de março de 2008

AS MENINAS ANTE O ESPELHO DO DESAMPARO.


Leitura de fatos violentos publicados na mídia
Ano 8, nº 11, 31/03/08
AS MENINAS ANTE O ESPELHO DO DESAMPARO




As telas de TV ainda estão ocupadas pelo drama da menina que era submetida a torturas praticadas por uma empresária na cidade de Goiânia e já surge outro caso desconcertante, envolvendo duas irmãs, de 12 e 14 anos. Elas aparecem acorrentadas em uma cama e são libertadas pela polícia. Informam que foi a própria mãe que as acorrentou, que são viciadas em crack e maconha, que quando estão livres saem para furtar e roubar e que o traficante que lhes fornece as drogas também as explora sexualmente e as ameaça de morte. Tranqüilamente, explicam que a mãe tem de acorrentá-las caso contrário elas fogem e podem ser assassinadas. Uma delas fala ao programa Cidade Alerta em 21 de março de 2008: “uso droga e quero parar com essas coisas. Ela (a mãe) faz isso para me ajudar”.



A notícia circulou no dia 19 de março de 2008 em vários meios de comunicação, entre os quais no programa Brasil Urgente, da rede Bandeirantes. O apresentador José Luiz Datena entrevistou a mãe das garotas e, obviamente, perguntou, insistentemente, se a mesma estava arrependida. A esta pergunta, Milene, uma jovem catadora de lixo respondeu, com tranqüilidade que não, que ela se arrependeria se suas filhas morressem assassinadas pelo traficante que as ameaça. Complementa a resposta dizendo que procurou o Conselho Tutelar e a polícia e não conseguiu ajuda.

O programa Cidade Alerta, do SBT, concorrente direto do Brasil Urgente que recentemente voltou à tela incorporou o assunto à sua agenda, tal como o fez em relação ao grave acontecimento de Goiânia. Desta vez predomina entre os dois canais uma questão ambígua: a mãe teria praticado o crime de cárcere privado, portanto, merece a condenação, entretanto, no contexto do problema, a atitude materna pode ser interpretada como uma forma desesperada de proteção.

Enquanto o assunto se desenrola sob a vigilância midiática emerge a atuação do estado através da internação das duas garotas numa casa-abrigo da prefeitura de São Paulo. A notícia, porém, foi imediatamente superada pela fuga das suas meninas que foram encontradas à noite pelos vizinhos e voltaram para casa drogadas, tendo permanecido apenas dez minutos na instituição de acolhimento do poder público municipal. Ao lado dessa frustração são registradas as falas das crianças que repetem que correm risco de serem assassinadas e que seu algoz mora perto delas, à vista de todos. E os programas mostram as imagens do lugar onde mora o acusado, mas ele não se encontra. A polícia, conforme as notícias e as imagens de TV, está no encalço do agressor.

Em outro plano são expostas revelações dos vizinhos daquela mulher que acorrenta as filhas. Todos são em unânimes em justificar aquela atitude, à primeira vista desumana, evidenciando que aquela senhora é uma “mãe muito esforçada”, anda pelas noites a procura das filhas que correm riscos variados na busca por drogas e na companhia de um traficante.

Diante da inquietação sobre os motivos pelos quais as filhas não estão freqüentando a escola, Milene informa que elas deixaram de freqüentar porque “elas roubavam lá e tive que tirar”. Acrescenta que “elas iam roubar e a vítima reagia e voltavam todas zunhadas para casa”.

As entrevistas têm como um dos cenários a casa de Milene que é uma habitação coletiva na qual ocupa um quarto com uma cama e um colchão no chão para ela e suas filhas. É deste universo humilde da Zona Leste de São Paulo que sai essa história que foge aos contornos da legalidade. E deste lugar que Milene parece não entender o sentido da acusação que recai contra ela: quem vai me processar dizendo que eu maltratava minhas filhas?



Eis um drama social que se encerra na impossibilidade de se exercer a cidadania que se coloca como uma espécie de abstração e quase um luxo para os grupos condenados à marginalização. Neste caso, Milene tenta, desesperadamente, separar suas filhas do crime, mas para fazê-lo ela precisa se valer de uma outra prática prevista como criminosa. E a pergunta que se faz, diante das notícias, é: que saída pode oferecer Milene na defesa de suas filhas?

Diante das câmeras de TV, as crianças foram levadas a uma clínica de recuperação. Milene parece satisfeita. Agora é torcer para que o tempo fora da tela seja de proteção à infância e à adolescência.


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domingo, 30 de março de 2008

Veja meu Slide Show!

PALOMA JORGE AMADO ESCREVE O ABC DE SALVADOR.


PALOMA JORGE AMADO ESCREVE O ABC DE SALVADOR.



Quero contar minha cidade à maneira dos poetas que povoam nosso Nordeste.


Meu ABC é sem rimas, não nasci com o dom da poesia. Substituo os versos pelo amor imenso que sinto por este chão que me acolheu




A.Com A se escreve acarajé e também abará, bolinhos feitos de feijão fradinho, aqueles fritos, estes cozidos no vapor, ambos com azeite de dendê e camarão seco. Hábito mais que centenário, herança de tantas gerações. Em torno de uma baiana de acarajé a reunião pode ser de amizade ou só de gula, pode ser momento solitário para tapear a fome com prazer, para sentir o crocante, a pimenta, o dendê escapulindo pelo canto da boca. Vamos comer abará na Lagoa do Abaeté? “No Abaeté tem uma lagoa escura, arrodeada de areia branca...”, cantou Caymmi um dia, há muito tempo.




B.Bahia! Há quem estranhe quando alguém diz: “Vou para a Bahia”, referindo-se a Salvador. Na verdade, o nome é Cidade do Salvador da Bahia de Todos os Santos, chamamos também de Cidade da Bahia, ou Cidade do Salvador, ou Salvador ou... Bahia. Que som mais lindo para representar esta Bahia do que a voz de Bethânia?




C.Carnaval, Caetano, Candomblé, Caymmi, Carybé, Calá, Camafeu de Oxóssi, Caruru, Carlinhos Brown, Candeal, Clarindo Silva, Capoeira... D.Daniela Mercury, intérprete maravilhosa da música de Caymmi, Caetano, Carlinhos e tantos outros. Dodô e Osmar, sinônimo de Trio Elétrico, invenção genial que fez do Carnaval da Bahia um acontecimento único e múltiplo, pois, a cada ano, é renovado. “Atrás do trio elétrico, só não vai quem já morreu...”, cantou Caetano.




D das principais alquimistas da culinária baiana: Dadá e Dinha. A primeira conhece a cozinha tradicional a ponto de poder reinventá-la, a segunda faz o melhor acarajé do mundo!




E.Elevador Lacerda, encravado na rocha da Ladeira da Montanha, desde 1873, para ligar a Cidade Baixa à Cidade Alta. Esporte Clube Bahia, o famoso Bahia, time que reúne percentual importante dos torcedores baianos.




F.Festa, Filhos de Ghandi, Farol da Barra, Forte São Marcelo. Forte São Macelo, adoro chegar à Avenida Contorno, que liga as cidades Baixa e Alta, olhar para a Baía de Todos os Santos e ver o forte, solto no meio do mar, tão elegante na simplicidade de suas formas.




G.Gantois, o candomblé da mais linda Oxum, mãe Menininha, hoje comandado por mãe Carmem, sua filha de sangue. Escrevo também, e reverencio, a música de Gal Costa e a de Gerônimo, a arte de Genaro de Carvalho, o grande tapeceiro que traduziu as cores e a tradição baianas em pontos bordados com lã, em belos tapetes.




H.Canto o hino em homenagem ao Senhor do Bonfim, nosso padroeiro, cuja igreja, no alto da Colina Sagrada, tem suas escadarias lavadas com água de cheiro na segunda quinta-feira de janeiro. “Glória a ti, neste dia de glória. Glória a ti, redentor que há cem anos Nossos pais conduziste à vitória Pelos mares e campos baianos. Nesta sagrada colina...”




I.De Igreja, e peço a Ivete Sangalo para cantar: “365 igrejas, a Bahia tem, numa eu me batizei... “Não sei se Caymmi exagerou na quantidade ao escrever essa música, mas que são muitas igrejas, ah, isso é verdade. A praia de Itapuã não foi cantada só por Caymmi. O poeta Vinicius de Moraes disse, com muita propriedade, que “é bom passar uma tarde em Itapuã”. E para ir a Itaparica é só pegar um catamarã e atravessar a baía.




J.Jussara Silveira, a cantora de Iemanjá, ou de frutas daqui, jambo, jaca... Mas peço licença para apenas citar o nome de meu pai, que foi o mais fiel intérprete desse povo: Jorge Amado, Ai, quanta saudade!




L.Lauro de Freitas, município contíguo a Salvador, sua extensão, caminho para se chegar a Arembepe, Praia do Forte, Itacimirim e Costa do Sauípe. É aí que fica o terreiro de Augusto César, filho do Gantois, pai de santo da maior responsabilidade, além de pessoa finíssima e querida.




M.Mingaus, que se tomam bem cedinho nas esquinas, para começar o dia cheio de energia. De milho, de tapioca ou de puba. Moquecas: peixe, arraia, camarão, siri mole, maturi... Sabe o que é maturi? É raridade! Trata-se da castanha de caju, ainda verde, tenra e deliciosa. Maniçoba, comida forte, feita com maniva, a folha da mandioca. Sem falar nas mangas, nas mangabas suculentas. Mario Cravo e Mario Cravo Neto, pai e filho, expoentes da arte baiana. O pai, o escultor maior; o filho divide com Maria Sampaio os louros da fotografia na Bahia.




N.Natureza. Ali por Itapuã, na área do Abaeté, a Natureza caprichou nas dunas branquinhas. O desavisado pensa que é neve. Como se fosse possível nevar com este calor! Mar mais lindo, o daqui! Um dia, ouvi Caymmi dizer, olhando o mar: “Que marzão bonito, benza-o Deus! E pensar que tudo isso é meu!” É verdade, essa Natureza pródiga é de todos! Benza-o Deus!




O.“Odoyá!” Assim os filhos devem reverenciar sua mãe Iemanjá. Os que não são filhos também, ela gosta. De minha casa, somente eu sou Iemanjá. Meu pai era protegido por Oxóssi, minha mãe, por Oxum, meu irmão, por Xangô. Com boa parte do panteon dos orixás olhando por nós, fomos sempre abençoados e felizes. Olodum, Este bloco afro, foi além de tocar e alegrar o mundo. Ensina e canta da nossa veia africana, ajuda meninos e meninas a serem cidadãos.




P.Projeto Axé, criado pelo italiano Cesare de La Roca, homem de fibra. O Axé já trouxe para a educação e o trabalho mais de três mil crianças. Pensar que os capitães da areia, em 1935, eram uns 300 e que proliferaram para perto da casa do milhão no século 21... Pelourinho, o nosso Centro Histórico, Patrimônio da Humanidade da Unesco. Os casarões que orlam as ladeiras abrigam, hoje em dia, casas de cultura, restaurantes, comércios de artesanato e arte. Aí está a Fundação Casa de Jorge Amado, num casarão azul, em pleno largo, olhando para a igreja do Rosário dos Pretos. Praias. São tantas, uma melhor que a outra, numa orla de mais de 18 quilômetros: Pituba, Porto da Barra, Piatã, Placafor! Praça Dois de Julho, conhecida também como Campo Grande, onde está um dos circuitos do Carnaval; o Plano Inclinado, que é uma espécie de elevadorzinho que liga as cidades Alta e Baixa, sai do lado da Praça da Sé. E viva também a preguiça?




Q.“Vai um queijo de coalho assado, meu bem?”, pergunta o menino, trazendo numa das mãos o fogareiro aceso, na outra um leque de queijos enfiados em espetos. Delícia das delícias, melhor ainda se acompanhado de mel de cana ou melaço.




R.Rio Vermelho, meu bairro querido, hoje em dia um dos points da cidade, cheio de barzinhos e restaurantes. É aqui que transcorre a grande festa de Iemanjá, a cada dois de fevereiro – “Dia dois de fevereiro, dia de festa no mar...”., olha Caymmi cantando outra vez! Nesse dia, desde muito cedinho, formam-se filas de devotos da Rainha do Mar, em frente à casa dos pescadores. Eles vão levar seus presentes e encher os cestos de perfumes, espelhos, pentes, flores. Cestos prontos, saem os barcos em cortejo para o quebra-mar, onde são jogados. O presente que voltar à praia não foi aceito. Raramente ocorre. A mãe, generosa, fica feliz com as oferendas e não desaponta seus filhos. Odoyá! Rede rima com Bahia! Aquilo que chamam de preguiça, mas que é saber viver, pede rede entre mangueiras, para aproveitar a brisa do mar. Tomar uma água de coco, tirar um cochilo... Ai!




S.Soteropolitano! É assim que somos chamados, os de Salvador, os aqui nascidos e os por ela adotados. É estranho, mas bonito! Sou soteropolitana, com muito orgulho. Sarapatel! Prato substancioso, feito de miúdos de porco. Nem todo mundo gosta. E siri-mole pode-se comer inteiro e suspirar de prazer.




T.Teatro Castro Alves, Teatro Vila Velha, Tororó, o dique, uma das moradas de Oxum. No centro do Dique do Tororó estão os orixás esculpidos por Tati Moreno, um dos grandes escultores desta cidade. Tabuleiro da baiana, tradição centenária. É preciso completar o cardápio do que é vendido nas esquinas de Salvador: bolinho de estudante, que é feito com tapioca e coco; petitinga frita, um peixinho delicioso; e, de sobremesa, todas as espécies de cocadas – puxa, branca, preta, com amendoim, com goiaba... Trapiche Adelaide, um restaurante no trapiche, que serviu de palco para o mais lido dos romances de Jorge Amado, Capitães de Areia. Comer um foie gras com maturi e molho de jabuticaba, olhando para a Baía de Todos os Santos, é um luxo que a pessoa deve se oferecer ao menos uma vez na vida.




U.Umbu! Frutinha verde, ácida, refrescante, vendida no verão em toda a parte: mercados, feiras, e até por meninos, que a trazem em seus carrinhos de mão. Uma das melhores “roskas” – caipiroskas, no linguajar local – é feita com umbu.




V.Vatapá e Margareth Menezes, com sua voz preciosa, vem rápida cantar a música de Caymmi: “Quem quiser vatapá, oi, que procure fazer... Uma negra baiana, oi, que saiba mexer...” Vatapá, comida feita com pão dormido, castanhas, amendoins, camarões secos, dendê e um caldo de cabeça de peixe. Coisa do outro mundo! Usa-se rechear os acarajés e os abarás com vatapá. Assim como Carybé, o fotógrafo Pierre Verger veio para a Bahia depois da leitura de Jubiabá, de Jorge Amado. Aqui fez lindíssimas fotos, misturou-se com o povo e aqui viveu até morrer. A Editora Corrupio - - temos editora baiana! – organizou o acervo de negativos e publicou dez livros seus – um panorama extenso dos costumes da cidade da Bahia, que fotografou por décadas.




X. Xangô, orixá dos raios e da justiça, com seu martelo e suas contas cor de terra. Meu irmão João é seu protegido, meu neto Nicolau também. Orixá namorador, seus filhos nascem para a sedução. O mais famoso candomblé da Bahia, o Ilê do Axé Opô Afonjá, é a ele dedicado. Meu pai foi um de seus obás – os obás de Xangô são ministros civis, que ajudam o terreiro. Junto com ele estavam Carybé, Camafeu de Oxóssi e Caymmi. Kawo Kabiyesi le!




Z. Com a letra Z poderia dizer que vamos zarpar, depois de tão longa viagem pelo abecedário baiano. Prefiro, no entanto, escrever Zélia, o nome de minha mãe, paulistana de nascimento, filha de italianos, aqui feita filha de Oxum, soteropolitana por merecimento. Contando isso, quero dizer que esta terra generosa acolhe de braços abertos quem nela chega e, com mel e sol, dendê e malemolência, torna todos seus devotos.