sexta-feira, 18 de janeiro de 2008

DROGAS: O SENTIMENTO DOS USUÁRIOS.


DROGAS: O SENTIMENTO DOS USUÁRIOS.
Ele chegou dizendo que era vitima do Satanás. Mostrou como na noite passada tinha usado a “neve” – cocaína pura. Reproduz a forma como utiliza. Disse que desde os 14 anos se iniciou no mundo das drogas. Cola, maconha,álcool. O rosto é sofrido apesar dos 21 anos. Tem dificuldade de se expressar. Não consegue me encarar, olhar nos olhos. Tem vergonha dele. Mas ao mesmo tempo, expressa poder. Diz que conhece de tudo. Entrou no mundo do crime, entrou no mundo das drogas, do sexo, já não sabe o que acontece com ele quando entra nas rodas de drogas. Refere-se mais uma vez a Satanás: ele é o culpado ! Mas me procurou porque quer renascer. Tem 21 anos e me pede para que o ajude a deixar este elenco de hábitos, esta mistura mortal de álcool e drogas. Em sua fala, há sentimento de culpa. O rosto envelhecido. Olha para os lados,pisca os olhos, se ajeita na cadeira, mostra que esta inquieto e quer que a entrevista se acabe. De novo repete: “quero deixar o mundo do crime”. Pergunto a que crime se refere. Aumenta a ansiedade. Ele transpira, passa a mão no rosto, desconversa. Que crime? Disfarça. Responde. O uso de drogas, de todas as drogas. Acredito. Digo que acredito. O que leva ele a sentir-se assim ? Disse que deseja os objetos das pessoas, que não pode ver algo que desperte sua atenção porque deseja para ele.Gostaria de ter tudo que os outros tem. Dinheiro, poder, carro, moto. Tem boa aparência e consegue estar vivendo agora com outros homens, provavelmente mais velho.
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Conta que gosta de uma menina mas que ela o rejeita. Por isto usa mais droga.E em que lugar usa? Compra com que dinheiro ? Me responde que usa com os amigos, dentro do carro. Cheiram a neve ali mesmo e depois já não tem noção do que acontece.
Mas, Satanás é o culpado. Ele quer sair desta vida. Ele engana a mãe. O pai evaporou. Ele não mora mais com a família, não fez o segundo grau. Está bem vestido, cabelo bem cortado, tatuagem. Olho e vejo que é bonito.
Mas está visivelmente perturbado, já não diz coisa com coisa. O raciocínio começa a falhar.
A memória também. Demonstra uma certa agressividade.Começa a achar que corre o risco de ser entregue a polícia. Pergunto se já foi traficante. Ele responde: “já cometi todos os crimes mas não trafiquei. Compro com o meu dinheiro a droga que uso” – diz ele. Pergunto se a neve é cara. Responde que sim, que é da melhor.Vejo que olha sem parar para a minha bolsa e para o meu celular. Já não presta atenção em mais nada. Está com os olhos fixos nos objetos. Não sei se tenho medo dele ou se tenho piedade dele. Não retiro os objetos do lugar. Sei que tenho chances de ser atacada. Mas não demonstro pavor. Aquele garoto de 21 anos esta angustiado. Pergunta o que está fazendo ali. Me disse que na véspera misturou todo o tipo de bebida. Fala de sua sonolência. Pergunto se quer ir embora. Ele pergunta o que farei por ele e com ele.
Pretendo encaminhá-lo para uma instituição mais adequada que a nossa. Mas, peço que procure a família e que a mãe dele venha conversar comigo. Consegui que ele partisse com alguma serenidade da entrevista. Mas eu perdi a serenidade. A semana passada outro jovem estava entregue ao crack, que a parte pior da cocaína, o refugo, caminho certeiro da morte. Estava magro, bem magro, sem sintonia. A mãe aflita me pedia o milagre. Trazer o filho de volta para a vida. Penso em renascimento, penso em passagem, penso na Páscoa, na celebração da vida. Penso nesses jovens. Todos seguiram o mesmo caminho. Álcool, cola,maconha, cocaína, crack, êxtase.
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O nosso Programa para Adolescentes Infratores- PAI , (o nome não é irônico –pode ser uma frágil perspectiva de substituição) não tem condição de atendera demanda.
A droga está em toda esquina, disseminada em toda a sociedade. Os jovens ricos usam por opção mas sofrem igualmente. Chegam a agredir a família pois é questão de vida e morte ter dinheiro para comprar. Roubam, ameaçam. Um me disse: “quero ser trancado em casa; não quero sair para comprar”. Pergunto sobre a crise de abstinência, se sabe como será. Pergunto a família se já testemunharam alguma crise de abstinência de drogas.
São sempre as mesmas colocações. Sempre uma mãe que chora, geralmente sempre um pai mais ausente. E tem gente que diz que a droga não vicia. Gente que já teve experiência e saiu ileso. Então, acredita que qualquer outra pessoa poderá repetir o feito de sair ileso. E haja estímulo. Alguns acreditam que é fase, que logo será superada, que não há razão para desespero. Experiências de adolescentes. A geração de 70 usou. A geração de 80 usou. Todos se safaram. Todos ?Com o advento da AIDS e o reconhecimento público do nível de disseminaçãodas drogas, o que antes era paz e amor, a mistura de sexo e drogas,tornou-se combinação mortal.
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As campanhas nunca mostraram de fato uma crise de abstinência. Nunca mostraram alguém estremecendo, revirando os olhos, amarrado, em desespero. As campanhas apresentando jovens fechando portas para a droga como seestivessem fechando portas para envolvimentos afetivos. As drogas são mais poderosas que os envolvimentos afetivos, do que a hierarquia familiar.
Então, refletir é muito bom. O que fazer se, nesse momento, próximo a nossa casa alguém está usando, está comprando ou vendendo ? Os sistemas de compra ultrapassam a capacidade estratégica de qualquer sistema de marketing
Você usa? Seu marido usa ? Seu filho ou filha usam ? Seus amigos usam ? Você já parou para pensar nisto ou prefere manter-se distante da questão ? As drogas são violentas da mesma forma que a sociedade é violenta e parceira do uso. O meu desejo é que ao abrir a questão em torno dos que estão próximos, mantendo-nos disponíveis ao diálogo, possamos ser mais visíveis uns aos outros. A postura de achar que o nosso melhor amigo não usa, que nossohipócrita.
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Estamos no século XXI. Não viva como se estivesse no século passado,fingindo que estamos sempre arrodeados de boas ovelhas. Apenas decifre sequem está do seu lado é usuário, traficante, ex-usuário, curioso oucontrário às drogas.
Retirar esta conversa da roda é empurrar muitos dos que vivemos para as rodas da neve, crack, maconha e álcool , entre tantas e tantas categorias. Pense nisto.
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Vera Mattos é psicanalista/Jornalista e presidente da Fundação Maria LúciaJaqueira de Mattos.E-mail : fundacaojaqueira@yahoo.com.br

Um comentário:

  1. Houve um tempo que estas coisas não faziam parte da vida de pessoas como eu, vida pacata no interior. Aliás nem da cidade em que eu moro. Hoje tem filhos de amigos queridos e próximos nesta situação. Precisamos conversar sobre isto com nossos filhos, nossos netos. Esta é uma dura realidade que mora ao nosso lado. Não tem como não ver.

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